A origem da cidade de Juiz de Fora relaciona-se à construção do Caminho Novo, antiga estrada que conectava a região das minas ao Rio de Janeiro, a fim de implementar rotas alternativas para o escoamento do ouro da região e evitar o contrabando ou o não pagamento dos tributos. Essas rotas do Caminho eram formadas por matas fechadas habitadas por indígenas puris e coroados, caracterizadas como formas de aldeamento de povos originários que viviam na região, tanto para o trabalho forçado como para sua aculturação. A Coroa, por sua vez, utilizava a existência dessas populações na Zona da Mata para enfatizar as formas de proibir a circulação, com o intuito de diminuir o contrabando de ouro, a partir da narrativa da violência desses povos.
Em 1835 o escravocrata e engenheiro alemão Henrique Halfeld, considerado pela historiografia tradicional como um dos “pioneiros”, foi responsável pela construção da Estrada do Paraibuna, posteriormente denominada “Rua Direita” e atual Avenida Barão do Rio Branco, considerada uma das mais importantes vias no centro da cidade (MUSSE, 2008, p. 72). No entanto, o povoamento inicial emergiu à margem esquerda do rio Paraibuna, a partir de um núcleo composto pelo Morro da Boiada, Tapera, Alto dos Passos e Fazenda do Juiz de Fora, região do atual bairro Vitorino Braga. Em momento posterior, o rio cujo nome de origem indígena significa “rio de águas escuras” (ESTEVES; Apud LAGE, 1989) e que dividia a região formada por morros e o centro pantanoso - devido aos seus constantes transbordamentos -, também passou a denominar o município.
Em 31 de maio de 1850 diante a iminente necessidade de reconhecer e emancipar o vilarejo de Barbacena, criou-se a Vila de Santo Antônio do Paraibuna em homenagem à paróquia deste santo. E assim, formava-se aos poucos o centro da cidade, local onde se concentravam o comércio, a política e a cultura. Em 1865, a cidade passou a denominar-se Juiz de Fora (BASTOS, 2004, p. 73-75).
Nesse contexto de desenvolvimento, Juiz de Fora assumia outras funções, além da intensificação de suas atividades comerciais e de armazenamento e escoamento de café, acompanhando o desenvolvimento da Zona da Mata mineira no século XIX, recebia ainda grande leva de imigrantes (GENOVEZ, 1998, p. 14). Cabe destacar, que o incentivo de mão de obra imigrante fazia parte, primordialmente, de uma política de branqueamento pós- abolição da escravidão no Brasil.
Na esteira de desenvolvimento, os serviços urbanos são incrementados com a instalação de bondes, implantação de iluminação pública, fundação do Banco do Crédito Real e a construção da primeira usina hidrelétrica da América Latina, a Usina de Marmelos, por iniciativa do industrial Bernardo Mascarenhas (OLIVEIRA, 1994, p. 45). As fábricas Fiação e Tecelagem Bernardo Mascarenhas, Industrial Mineira e Antônio Meurer, bem como a Companhia Pantaleone Arcuri impulsionaram o crescimento industrial da cidade, captando investimentos e proporcionando o destaque de Juiz de Fora na Zona da Mata, fazendo com que ela fosse denominada “Manchester Mineira”, em referência à cidade industrial inglesa de mesmo nome.
Em suma, a cidade de Juiz de Fora representa a diversidade cultural manifesta em tradições da população negra, de descendentes dos povos originários, bem como os diversos imigrantes que constituem nossa identidade. A memória desses grupos permanece viva por meio das heranças culturais que atravessaram temporalidades e que se manifestam hoje em suas vivências, nos diferentes modos de sociabilidade, festas, saberes, expressões religiosas e culturais.
Dos blocos de ruas às escolas de samba, dos batuques às batalhas de hip hop, das tradições às transversalidades, a cidade de Juiz de Fora é cenário de importantes espaços de sociabilidade e de diversidade cultural do nosso país. A cidade desempenha um papel fundamental na construção das identidades e na dinâmica social, transgredindo narrativas, memórias e histórias “oficiais”. As praças, os parques e calçadões são espaços onde as pessoas se encontram, compartilham ideias e vivenciam manifestações culturais e artes diversas que fomentam a troca de experiências e fortalecem os laços entre as comunidades.
Esses locais refletem as múltiplas camadas históricas e culturais da cidade, que se constituem através das manifestações urbanas e que contribuem para enriquecer as vivências cotidianas e os diálogos interculturais. A arte dos grafites é expressada em diversos murais que compõem os espaços públicos, as travessias, os pontos de ônibus, as escolas entre outros lugares possíveis de se ocupar. No berço do hip hop, o bairro Santa Cândida na Zona Leste, destaca-se a cultura negra fortemente influenciada pela trajetória de Adenilde Petrina, militante do movimento negro e uma das criadoras do Coletivo Vozes da Rua, que por sua trajetória recebeu o título de Doutora Honoris Causa da Universidade Federal de Juiz de Fora em 2017. A poesia que atravessa gerações desde 2004 com a Confraria dos Poetas, contribui, fundamentalmente, ocupando escolas e espaços públicos. Para além do esporte, o Skate também representa a ocupação de importantes espaços da cidade e a reivindicação de outras formas de pertencê-la.
No cenário do carnaval na cidade, fortemente influenciado pela mistura de ritmos originários dos povos africanos e presentes nos imaginários e cenários cariocas, a população reconquista o espaço das ruas com a criação da escola de samba do Turunas do Riachuelo em 1934, inspirada no bloco Turunas da Mauricéia do Rio de Janeiro. Cabe destacar que a escola foi a primeira da cidade e a quarta do país, influenciando a criação de novas escolas. Nos dias atuais, as manifestações carnavalescas se mantém viva e presente, representadas por desfiles de escolas de samba e diversos blocos de rua, incluindo a Banda Daki, referência para a tradição e patrimônio cultural imaterial da cidade.
No campo da musicalidade, o samba se manifesta de forma bastante presente nos ambientes públicos e privados da cidade para além do período carnavalesco, conectando a população com o processo de identificação das identidades culturais, de preservação e continuidade do gênero musical como uma expressão cultural de fundamental importância. Em diversos bairros da cidade, o Movimento Samba de Mulheres na Praça reúne a população através das rodas de samba e das músicas que homenageiam as mulheres e os nossos clássicos do samba. No Beco da Cultura, corredor entre o Centro Cultural Bernardo Mascarenhas (CCBM) e a Biblioteca Municipal Murilo Mendes, ambos no Complexo Mascarenhas, o Samba dos Amigos se apresenta em rodas com samba, pagode e chorinho, com a intenção de manter a tradição.
Não é possível falar sobre o samba sem mencionar o Batuque Afro-Brasileiro de Nelson Silva, registrado como patrimônio cultural imaterial do município desde 2007. Criado em 1964, mesmo ano do Golpe Militar que saía das ruas de Juiz de Fora, o grupo se dedica a resgatar a história e valorizar a cultura negra em Juiz de Fora através dos ritmos, da dança, da arte, da cultura e da resistência com as expressões dos batuques, dos instrumentos e dos sambas em mais de 80 composições. Podemos citar também, outras manifestações culturais bastante presentes e que compõem os cenários das tradições, como as Folias de Reis e as práticas ancestrais de Capoeira.
Segundo o último levantamento realizado pelo IEPHA, a cidade de Juiz de Fora possui onze Folias de Reis cadastradas, que fazem parte de uma das celebrações mais antigas de Minas Gerais. As manifestações culturais-religiosas são formadas por cantadores e tocadores que se apresentam com caracterizações influenciadas por suas regiões, com instrumentos como a viola, o violão, o cavaquinho, o pandeiro, os bumbos, a sanfona e as caixas. Em Juiz de Fora, as Folias são compostas por foliões e palhaços, organizadas com maior predominância na Zona Sul da cidade, em bairros como Ipiranga, Bela Aurora, Teixeiras, Santa Efigênia e Vale Verde (GONÇALVES, 2014, p. 52).
O Ofício dos Mestres de Capoeira e a Roda de Capoeira são reconhecidos pelo Iphan como Patrimônio Cultural do Brasil em 2008. Juiz de Fora possui papel central na região da Zona da Mata, com um número expressivo de capoeiristas conforme dados do Cadastro Nacional da Capoeira (CNC/Iphan-MG). Assim, a capoeira também compõem o cenário de diversidade cultural da cidade, com posição relevante no processo de transformação e difusão histórica dessa prática e saber ancestral. Segundo Jefferson Gomes Nogueira, o primeiro mestre reconhecido em Belo Horizonte, Toninho Cavalieri, aprendeu o saber e o aprimorou em Juiz de Fora, tendo papel fundamental na formação de capoeiristas da capital (NOGUEIRA, 2021).
À medida que identificamos práticas e representações que constituem Juiz de Fora, evidenciamos ainda, outras memórias que perpassam tentativas de silenciamentos, mas que ao mesmo tempo rompem com normativas homogêneas socialmente impostas. Nesse contexto, o Concurso Miss Gay Brasil é uma importante expressão cultural desde 1977, representando, através das suas performances, a multiplicidade de referências culturais, músicas, estilos, vestimentas e caracterização dos diferentes sujeitos e diferentes estados, de modo a promover o respeito aos elementos que abarcam a cultura LGBTQIAPN+. Vale ressaltar que tais representações, se relacionam diretamente com os avanços das políticas públicas em defesa dessa população, como por exemplo a sanção da Lei 9.791 em 12 de maio de 2000, popularmente conhecida como “Lei Rosa”, que pune práticas discriminatórias contra os sujeitos LGBT+.
BASTOS, Wilson de Lima. Caminho Novo: Espinha dorsal de Minas. Juiz de Fora: FUNALFA Edições, 2004.
ESTEVES, Albino; LAGE, Oscar Vidal B.(Orgs). Álbum do Município de Juiz de Fora. [Belo Horizonte: Imprensa Oficial do Estado de Minas Gerais, 1915]. 2 ed. Juiz de Fora: PJF, 1989.
GENOVEZ, Patrícia Falco, LEITE, Mônica C. Henriques, GAWRYSZEWSKI, Paulo, FRAGA, Raquel de Oliveira. Núcleo Histórico e Arquitetônico da Rua Batista de Oliveira (parte central) e Avenida Getúlio Vargas. Nota prévia de pesquisa. Juiz de Fora: Clio Edições Eletrônicas, 1998. p. 20
GONÇALVES, Gabriela Marques. Cultura popular e comunicação: a Folia de Reis em bairros populares de Juiz de Fora. 2014.
MUSSE, Christina Ferraz. Imprensa, cultura e imaginário urbano: exercício de memória sobre os anos 60/70 em Juiz de Fora. Nankin Editorial, 2008, p. 72.
NOGUEIRA, Jefferson Gomes. Berimbau chamou Camará! A história da capoeiragem mineira: Juiz de Fora (1958-1980). Coleção História da capoeira de Juiz de Fora. Vol.01. Curitiba: CRV, 2021.190p.
OLIVEIRA, Mônica Ribeiro de. Juiz de Fora: vivendo a história - Juiz de Fora: Núcleo de História Regional da UFJF/Editora da UFJF, 1994.
Carine Silva Muguet - TNS III Historiadora, supervisora de Pesquisa e Educação Patrimonial - DMPAC/Funalfa
Flaviana Lopes Ribeiro de Oliveira - Estagiária de História DMPAC/Funalfa
Lara Ferreira de Oliveira - Estagiária de História DMPAC/Funalfa